Francisco Sousa Tavares foi um dos intervenientes activos do dia 25 de Abril de 1974. Foi ele um dos primeiros, se não mesmo o primeiro a falar ao povo naquele dia de 74. A sua intervenção no Largo do Carmo, ficará para sempre ligada à história daquele dia, da Liberdade e de Portugal.
As suas palavras no Jornal "A Capital" de 24-04-80, sob o titulo "O meu 25 de Abril", dão-nos a conhecer uma parte importante do que aconteceu naquele dia no Largo do Carmo.
(...) Foi para mim um dia longo
e emotivo: às quatro da madrugada, o telefonema dum sobrinho – Bernardo
Castelo-Melhor – avisou-me que, de meia em meia hora, o Rádio Clube Português
emitia um comunicado do Movimento das Forças Armadas, no qual se falava em liberdade
e se apelava à calma e à adesão do povo. Entre cada emissão, ouviam-se canções
de José Afonso, de Adriano, de Fanhais, baladas proibidas, todas elas
portadoras da esperança da liberdade, do fim da sujeição e do estado
ignominioso duma nação privada de direitos.
(...)
Não pude conter a minha impaciência e fui para a rua; também
queria ajudar, contribuir para a revolução, associar-me tanto quanto possível
ao movimento em curso, e ajudar a rodear o golpe militar da adesão maciça dum
povo que queria de novo ser senhor da sua dignidade e do seu destino.
Nas horas que passei no Terreiro do Paço, compreendi a serenidade do
ataque e a inércia da defesa. Acima de tudo, pairava o horror a qualquer
combate entre irmãos de armas e o cenário da revolução desdobrava-se em
afirmações de vontade, em diálogos sem solução e num exame aturado da
capacidade e número das forças alinhadas.
(...)
Mas o grande palco da revolução ia ser o largo do Carmo. Pude ver
que o Rossio estava totalmente ocupado por forças fiéis ao Governo, bem como a
Rua do Carmo e os largos do Camões e do Chiado. A PIDE dominava a António Maria
Cardoso e os acessos do Cais do Sodré e Corpo Santo, mas estava fechada com tal
medo que, perante gritos hostis dum grupo de rapazes, ceifou dois, que ficaram
a ser as poucas vítimas de sangue do 25 de Abril.
No largo do Carmo, estava a força de Santarém e estava sobretudo
Salgueiro Maia. Nas longas horas que com ele ali vivi e confraternizei, pude
apreciar a tranquila audácia dum homem que, com duas autometralhadoras e
centena e meia de recrutas, estava a destruir cinquenta anos de história, de
farroncas de força e de poder, mantendo em respeito uma força profissional e
adestrada como era a Guarda Nacional Republicana. Salgueiro Maia estava
cercado; pelo Rossio quase até ao alto da Calçada do Carmo, pela Rua da
Trindade e Largo da Misericórdia, onde se encontravam entrincheiradas as forças
da GNR. No Chiado, até aos largos, os blindados hostis da Cavalaria 7, e julgo
recordar que também da Cavalaria 2 e Metralhadoras 1. Mas nem sequer um
sentimento de dúvida ou de incerteza pairou na praça. Levada pelo sopro da
liberdade, a multidão acorria e o quadro do povo expressava ali a vontade da
nação contra qualquer veleidade de repressão sangrenta. Maia, audacioso e sereno,
pediu-me que falasse ao povo. Fi-lo por duas vezes, uma através dos microfones
dum camião da Rádio e, mais tarde, com um megafone, empoleirado na guarita da
sentinela do Carmo – imagem de Épinal** da Revolução em que o povo e a tropa se
abraçavam para libertar a Nação. A certa altura falei a Maia do cerco potencial
em que se achava envolvido e na evidente necessidade de não prolongar
indefinidamente a tomada do Carmo, onde Marcelo e parte do Governo se
encontravam, guardando com eles o selo da soberania e do poder. Foi então que
pude medir a dimensão extraordinária daquele homem. Respondeu-me na calma:
sabe, estes homens que eu trago não sabem atirar e o seu manejo de armas é
totalmente incipiente; o que você diz também me preocupa, mas pode-me fazer um
favor – ficou de vir ter comigo, aqui ao Carmo, a força revolucionária de
Estremoz, de Cavalaria 3, que é importante e já cá devia estar. É comandada
pelo capitão Ferreira, está atrasada e tenho receio de que, conhecendo mal
Lisboa, não saiba o caminho. Parti imediatamente e tive a sorte de encontrar
Cavalaria 3 na Rua Castilho. Tomei lugar no carro de comando com o capitão
Ferreira e voltámos para o Carmo o mais depressa possível. No Largo da
Misericórdia, depois duma conversa de Ferreira com o capitão ou major que
comandava a GNR entrincheirada, levantou-se o cerco para nos deixar passar. E
mal chegou Estremoz, Maia sentiu-se em posição de enviar um ultimato de
rendição ao quartel e lançar dois tiros de aviso à fachada, perante o
entusiasmo incontido da multidão que gritava: Está na hora! Viva a Liberdade!
Meu futuro genro, Francisco Ribeiro Teles, hoje secretário da Embaixada
de Portugal na ONU, vinha como miliciano com as tropas de Maia – onde só havia
voluntários. Confirmou-me, no telhado dum edifício do Carmo onde o fui ver que
era verdade a condição de recrutas com instrução quase nula dos soldados
comandados por Salgueiro Maia. E desde aí, guardei uma profunda admiração um
enorme respeito e uma séria amizade – que sempre se exprime quando se cruzam as
nossas vidas distantes – por esse herói tão esquecido e que foi, sem dúvida,
como operacional, o elemento-chave da Revolução de Abril.
Fiquei no Carmo até à rendição do Governo. A partir daí, a euforia da
vitória inundou Lisboa (...).
.
* Jornal “A Capital” de 24/04/80, Francisco de Sousa Tavares.
** ”Imagem de Épinal” é uma expressão de origem francesa, aplicada a
uma imagem, quando esta assume um significado ingénuo, algo que nos mostra
apenas o lado bom de um acontecimento. Francisco de Sousa Tavares refere-se às
fotografias que lhe tiraram, quando sentado na guarita do quartel do Carmo,
falava com um megafone à multidão.
Este texto faz parte de um artigo do Jornal "Público" de 27-04-91, encontrado nas "Crónicas Portuguesas"
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